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Último relato de paixão pela causa ambiental

Valéria Viana Labrea é mestranda em Educação e Gestão Ambiental pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.

Histórias que vêm do frio

Onde a terra começar
Vento Negro gente eu sou
Onde a terra terminar
Vento negro eu souA vida, o tempo/ A trilha, o sol
Um vento forte se erguerá
Arrastando o que houver no chãoVento negro, campo afora vai correr
Quem vai embora tem que saber
É viraçãoDos montes, vales que venci
Do coração da mata virgem
Meu canto, eu sei, há de se ouvir
Em todo o meu paísNão creio em paz sem divisão
De tanto amor que eu espalhei
Em cada céu em cada chão
Minha alma lá deixei.

(VENTO NEGRO, José Alberto Fogaça)

Contam que ela veio de longe, fugindo da guerra e da miséria no mundo, e da guerra que o mundo trava com seu povo desde a Antiguidade. Contam que veio às pressas, cheia de malas e caixas e pequenos esconderijos para esconder pequenos tesouros que, aprendera cedo, podem comprar uma vida. Contam que já vinha com dois filhos nos braços e um na barriga.

E assim ela chegou com marido e filhos no interior do Brasil, na região mais fria que, esperava, trouxesse o inverno que deixara para trás.

Não sei se é verdade, mas corre pela família que foi assim, no frio, vendo a lavoura que se deparou com um índio, pequeno, escuro, descalço, silencioso. Eles se olharam, desconfiados, a loura de frios olhos azuis que não falava outra língua senão o iídiche e o índio, bilíngüe, acostumado com outros vizinhos trazidos pela guerra, fugitivos de pogrom. Ele sabia entendê-la.

A compreendeu tão bem que, sabe-se como, a convenceu a acompanhá-lo. Uma noite saíram os dois, sem nada para carregar a não ser o filho na barriga e nunca olharam pra trás. Ela deixou casa, marido, filhos e uma história milenar para seguir o índio. O índio não tinha nada para deixar, mas inventou um nome para dar pros filhos que tiveram e construiu uma casa para ela. Estiveram juntos durante 60 anos, geraram sete filhos e iniciaram uma geração de mulheres fortes, passionais, exageradas e com uma capacidade de amar e de sofrer infinita.

Meus avós, Pedro e Hortência, sempre estiveram perto da família que inventaram para si, pois faziam questão que cada filho morasse na casa ao lado da sua e de sua casinha tinha um caminho de terra bem percorrido até a casa dos filhos. Não lembro de jamais tê-los visto senão de mãos dadas, sentadinhos na varanda ou cevando mate de manhã. Eu os conheci velhos, com mais de 70 anos e toda família dizia que eles jamais olharam para pessoa alguma, nascida deles ou não, do jeito que se olhavam.

Meu avô faleceu aos 79 anos, vítima de um câncer no estômago que ele guardou em segredo para não preocupar minha avó. No dia que ele faleceu, minha avó se deitou e jamais se levantou. Três anos depois, reuniu a família, se despediu e anunciou que iria morrer, que finalmente meu avô a avisara que já era tempo de ficarem juntos. Deitou e nunca acordou de seu sono povoado de sonhos de seu amor.

Não sei se a história é essa, se foi assim que aconteceu. Foi assim que me contaram. Em vez de contos de fadas fui criada, entre um beijo colorido e outro, ouvindo a história de minha avó, uma judia que teve a coragem de ir embora com um índio guarani em 1918. Nunca se casaram, pois ela já era casada, registraram cada filho com datas de nascimentos fictícias e cada um com um sobrenome diferente - palavras que achavam bonitas. É assim que em minha família os irmãos têm cores diferentes, cada um sobrenome – Amado, Moraes, da Cruz - e as mulheres inventam sua idade com muita tranqüilidade pois nem desconfiam quando de fato nasceram.

Eu cresci numa casa de mulheres. Cercada pela minha avó, mãe e tias. No meio dessas mulheres eu nasci e me criei. Passei na mão de todas: uma me pariu, outra me criou e outra me mostrou os beijos coloridos. Por todas fui muito amada e amei minha mãe e minhas tias incondicionalmente, com todos seus defeitos, por todos seus defeitos, todas tão humanas, tão frágeis e tão fortes, tão contraditórias em suas histórias que acabaram, naturalmente, criando um espaço onde elas fazem sentido. Eu as compreendo. E tenho minha avó como guia.

Fui criada em várias cidades, meu pai nos levou por todo o Rio Grande, em suas andanças em busca de trabalho. Assim, morei em Cachoeira do Sul, Santo Ângelo, Ijuí, Novo Hamburgo, Dois Irmãos, Gravataí, Alvorada, São Leopoldo e Porto Alegre. (...) Passávamos as férias à beira do Rio Jacuí, pescando ou íamos “pra fora”, para as fazendas dos meus tios-avôs lá no Alto Uruguai onde eu e meus irmãos passávamos o dia comendo torrão de açúcar escuro, e correndo atrás das galinhas (ou correndo das galinhas) e nos perdíamos nas plantações de milho e soja que nos rodeava. Hoje me dou conta que as plantações de soja e milho eram minha idéia de natureza. Nunca me ocorreu que essa não era a ordem natural das coisas e que um dia tivesse existido algo diferente da soja por lá. Também percebo que a natureza era o “fora”, o rural, o Rio Uruguai, as pescarias e nunca pensei que os pés de alface e tomates do quintal de meu pai tinham relação com sustentabilidade. Para mim eram apenas os tomates do meu pai.

O bom de recontar história é que quem conta escolhe o recorte. Pularei alegremente a adolescência e a triste experiência do meu primeiro casamento.

Desses tempos, só guardo a lembrança do nascimento dos meus filhos e do amor incondicional que tenho por eles. Nicolas e Pedro são lindos, inteligentes, queridos mas poderiam tranqüilamente não ser que não faria diferença: eu os amo desde a concepção. Os guris são meus companheiros desde pequenos, acostumaram-se a se enrolar nas minhas pernas lendo e escrevendo como eu, inventando histórias, montando seus legos e travando batalhas épicas com seus bonequinhos.

Até hoje, quando penso no Nicolas me vem a imagem dele, com 2 ou 3 anos, vestido de Batman com suas botinhas de chuva do Cebolinha que ele não tirava nem para dormir. Para mim, este é o meu Nicolas, hoje com quase 17 anos, lindo e solitário lá no frio do sul.

Pedrinho também está congelado na imagem que faço dele, ignorando que esse rapagão que toma litros de leite e vive pro videogame, deitado no tapete da sala é a criança de longos cabelos dourados que vivia rindo e se metendo nas brincadeiras solitárias do irmão.

Tivemos que juntos inventar maneiras de manter o amor e sobreviver a um período em que nos vimos sozinhos, sem dinheiro, família longe e ausente. Dessa luta, trago comigo sempre a lembrança deles me esperando tarde da noite, para juntos contar o dia e dividir o sono. Os dias frios, de sol raro, todos entrouxados, rindo muito nas praças vazias. Por amor a eles quis um outro mundo possível e descobri minhas utopias e a coragem para lutar por elas.

Entrei com 21 anos na faculdade, já com 2 filhos e um casamento naufragando. Optei pelo curso de letras porque desde a quarta série tudo o que fazia era ler. Entre mudanças e períodos com parentes, minha única constância era a literatura, a quem sempre preferi a qualquer outra companhia. Na biblioteca da escola lia sistematicamente todos os livros que tinha por lá. Todos. Depois disso, se tornou um hábito ler tudo que havia na biblioteca escolar. Eu lia em ordem alfabética – sempre fui muito conservadora – toda a obra de um autor, depois – e só depois, mesmo morrendo de vontade de ler outra coisa, ignorando quão chato poderia ser o raio da historia – eu passava pra outro. Ajudou nesse processo eu trocar de escola quase que anualmente. (...) Assim, jurando que ler profissionalmente era o que me aguardava na faculdade de letras, entrei na UFRGS e tomei o maior susto da minha vida.

Lá descobri que era alienada, bitolada, provinciana e que minhas leituras não me adiantavam de nada: todos já tinham lido tanto ou mais que eu, devoravam os clássicos desde tenra idade, recitavam Pessoa, parafraseavam Goethe no original e para meu espanto total liam obras que nunca tinha ouvido falar. Todos eram socialistas, comunistas, anarquista, praticantes do amor livre, amavam Che Guevara e naturebas. Conseguiam ler 200 páginas por semana, beber rios de cerveja e falar de metafísicas e da revolução, tudo ao mesmo tempo.

Por pura necessidade, me tornei bolsista e comecei a entender o curso e meu novo mundo. Por pura necessidade também comecei a trabalhar nas escolas públicas de São Leopoldo. Para não perder o emprego e disfarçar minha ignorância das regras ortográficas, desenvolvi um método de ensino e aprendizagem baseado nas historias de leituras e na leitura de histórias. Ao narrar minhas experiências em sala de aula, descobri que era vanguarda. Por não poder dispensar minha bolsa no período de férias me envolvi em um projeto de extensão que me permitiria passar um mês em um assentamento. O que mais me atraiu no projeto foi a possibilidade de deixar meus filhos na casa de praia com os avós paternos e assim economizar um mês de despesas domésticas.

Sem pretensão alguma me fui ao campo. Em boa companhia revi o pampa da minha infância e foi ai que descobri que tudo aquilo que me era tão familiar era ambiente construído. Nada era natural. Fiquei lívida quando percebi que os vilões do agronegócios eram os tios que me levavam a passear de trator por quilômetros de soja, e que as famílias tradicionais tinham o nome da minha. Resolvi fazer a minha parte, para mudar os rumos da família: fui estudar Paulo Freire e montar bibliotecas itinerantes pros assentados do MST.

Ao trabalhar com os assentados, construindo junto uma pedagogia, contando histórias para crianças, seduzindo-as para o mundo das palavraa-mundo, observando meus colegas a mexer na terra, mostrando um novo modo de produção de alimentos e de lidar com as coisas do campo eu finalmente compreendi a que vim.

Vim pra aprender e às vezes ensinar, sou testemunha da diferença que o conhecimento pode trazer para a vida de uma pessoa, pois passei por esse processo. Carrego comigo a história desse grupo de onde saíram parceiros de trabalhos e de sonhos, amor e afetos. Passamos 5 anos construindo um sonho no dia-a-dia, nas escolas públicas, nos assentamentos, nas vilas. Em Porto Alegre viramos referência, nos reconhecemos como educadores populares,desenvolvemos uma ética, a do cuidado e procuramos sempre ter no outro um espelho do nosso trabalho. Foi uma época rica, de luta, de encontro, de militância, de sinetadas e acampamentos.

Eu acordava às 5 horas da manhã para ir para a aula e no ônibus, ouvindo Vitor Ramil no meu walkman, vendo o sol surgir no meio da névoa invernal, eu sentia a certeza de ser parte de algo que é maior que eu e que vai continuar depois que eu for embora.

Aconteceu o Fórum Social Mundial e minha vida mudou novamente. A militância me levou para a coordenação do evento e foi incrível ver aquela multidão reunida, todas as cores, todas formas, todos os povos circulando por Porto Alegre, minha cidade.

Tudo que me aconteceu depois do FSM foi conseqüência dele. Criamos um evento paralelo ao FSM para as crianças, o FórumZINHO Social Mundial, fizemos um Encontro Internacional de Contadores de Histórias, criamos o Fórum Mundial de Educação e lá fizemos um lindo encontro sobre a Carta da Terra, e passei a desenvolver minhas atividades tendo a Carta da Terra como referência ética.

Meu grupo se fortaleceu, se expandiu e éramos muitos a trabalhar em espaços públicos e nas escolas. Meu trabalho tornou-se conhecido, fui viajar, passei temporadas na Europa e viajei pelo pais, fiz parte de vários projetos, vários grupos, muitas redes e em algum momento me perdi.
Perdi um encantamento que tornava tudo que eu vivia uma surpresa. Cansei dos constantes embates, por estar mais perto do poder percebi as vaidades e projetos pessoais que permeiam cada ato da gestão da coisa pública e, para continuar sendo eu mesma, me despedi de Porto Alegre.

Brasília. Vim para cá a convite do MMA para compor governo e fugir do frio. Fui para a Agenda 21 para fortalecer a Carta da Terra nas políticas públicas. Nada mais ilusório. Vivendo e não aprendendo. Passei meses viajando, sem ter uma casa aqui, hóspede permanente. Conheci pessoas, estudei muito para acompanhar as discussões no governo, organizei eventos, escrevi textos, mas não surgiu o espaço para realizar o projeto que vim fazer. Meu desencanto aumentou. Após poucos meses percebi que o projeto de defendia lá no sul, agora que era governo se descaracterizou e virou outra coisa. Acompanhei a apropriação da coisa pública pela companheirada, que disputava cargos para toda a família, colocando nos ministérios a esposa, filhos, genros, amigos, instrumentalizando as ONGs e os movimentos sociais, silenciando o trabalho de base.

Resolvi sair do governo,
viajei, conheci o meu amor, tive filhos, fui para o MEC e voltei a estudar: fiz uma especialização em Educação Ambiental e estou no mestrado do CDS da UnB onde estudos a Rede Brasileira de Educação Ambiental e me descubro uma educadora ambiental. Aprendi nesse caminho que a sustentabilidade começa em casa, com as pessoas que amamos e que é nesse “local” que fazemos diferença. Estando com a casa “arrumada”, os amores expressos, os afetos em dia, encontramos em nós mesmos a força para contribuir para uma nova sociedade.

Hoje Brasília é meu lar. Aqui tenho uma casa precisando de reformas, meus livros e cds. Minhas crianças passam o dia entrando e saindo de casa, molhando minha horta e jardim com a água velha da piscina de plástico, brincando na varanda. Estou muito apegada às minhas florzinhas e arvorezinhas. Como a fruta que meu filho me traz da mangueira do jardim. E tenho um cachorrinho que late o dia inteiro.

Pretendo passar o ano lendo, em casa, ouvindo a gritaria das crianças. Continuo estudando porque cada dia mais me convenço do pouco que sei. Acho uma temeridade o atrevimento de anos atrás, quando imaginava que tinha algum saber para trocar. Vejo que sempre ganhei mais que dei para essas comunidades. E me sinto grata pelo caminho que percorri porque foi ele que me trouxe até aqui, no meu lugar.

Para ganhar a vida, faço o que gosto e acredito: trabalho com um grupo de estudantes e juntos construímos um projeto de extensão universitária que nos leva às escolas públicas do entorno do DF. Fazemos oficinas, ensinamos-e-aprendemos juntos a nos assumir educadores. É um trabalho bonito, de formiguinha, pois cada vez mais me convenço que é lá na ponta que fazemos a diferença.

Não penso mais em retomar o FórumZINHO e me envolver em mega-eventos. Li em algum lugar sobre a “vanguarda que se auto-anula”, para dar lugar ao novo. Faço questão que venha o novo. Não quero me agarrar a pequenos poderes e prefiro me pensar como um vivo aberto ao devir.

Entendo a sustentabilidade como tendo várias dimensões e tento trazer essa diversidade para minha casa e minha prática. Às vezes sou feliz nas minhas tentativas, outras me sinto impotente com tudo que vejo. Mas imagino que Leonardo Boff tem razão e somos – nós humanos – um projeto infinito, sempre em abertura, procurando.

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